Essa é a minha sentença de morte e o meu testamento.
Quando vi o João estendido na cama, ouvindo Clarisse e curtindo a
mais dura de todas as fossas, fiquei de cara. Nem acreditava: eu e
meu amigo havíamos perdido nossa adolescência ouvindo um filho
depressivo de bancário. Renato tornou-se o grande poeta dos meninos
e meninas e da geração coca-cola, mas afundou-se em um pântano de
tristeza quando desistiu do punk e enveredou-se pela poesia
sentimentalista. Com o passar dos anos, sua obra foi adquirindo
traços ainda mais mórbidos e eram a expressão de uma alma
solitária que queria comungar com os jovens ricos de nosso país.
Mas não era isso que eu queria ter: quando senti que a fossa era
contornável, vi a hora de mudar tudo o que eu tinha construído,
todas as minhas fantasias e referências. Vi que o mundo precisa de
mais tesão para seguir, de tesão para desfrutar a transgressão,
viver na fronteira. Porque a vontade de transformar o espaço não
tem limites, e o Rock que ouvíamos estava longe de nos dar essa
força.
Quero sentir a raiva potencializada em acordes dissonantes, em
barulheira e pancadaria. As palavras de amor, mesmo as mais sinceras,
omitem a realidade. Quero ser resistente como um bloco e arredio como
a fumaça. Foda-se a merda do politicamente correto; fodam-se
devaneios pueris e angústias fantasiosas. Os jovens permaneceram
acomodados por tempo demais: essa estabilidade que o Rock alienante
alimenta, a autorreflexão exacerbada sobre seus próprios dilemas e
a busca alucinada pelo prolongamento de um bem estar mistificado,
cairão por terra. Só o peso e a velocidade do verdadeiro Rock podem
descarregar toda poluição acumulada dentro de nossos pulmões e
cabeças; só a atitude crítica e irreverente protesta e sacaneia um
sistema que é contraditório por natureza.
Desde junho Goiânia tornou-se um caos. Na verdade, a zona, que
permanecia coberta de elucubrações e veleidades, veio à tona. A
rua virou lugar de se fazer política. A Câmara tornou-se espaço a
ser ocupado; fachadas de lojas, ônibus e terminais, lugares
propícios para o “vandalismo”. O movimento estudantil ganhou
oposição. Nesse contexto, é possível situar a cultura
alternativa? Festivais de Rock e rolês do underground: que papel
desempenham nesse momento histórico da iludida nação verde
amarela?
Acima de tudo eu quero o êxtase. Fugir dos interesses mesquinhos,
do cinismo, do oportunismo e da lógica de mercado. Da alienação
que o apego e a fé provocam. Quero um fenômeno extracotidiano para
cada instante. Revoluções por minuto, mas dessa vez de verdade.
Não quero a depressão: fujo da fossa. Lamúria e melancolia não
me deixam inspirado. O punk que nasceu em 1976 ia contra a
mercantilização extremada da indústria fonográfica, contra os
solos de guitarra intermináveis e o virtuosismo de grandes
instrumentistas. O punk que surge agora vai contra a depressão
pós-moderna. Nós somos a crise do pós-moderno: andamos na
contramão de quem anda em círculos e se equilibra entre dias e
noites. A vida não espera nada de nós, pois somos nós quem ditamos
nossos próprios caminhos.
Raimundos e Planet Hemp superaram a crise do pós-moderno. Em suas
letras, disparam flechas contra o moralismo, o sexismo e a
marginalização do uso da maconha, lutando pela liberdade. Os
Garotos Podres criticam a política e o modo de vida burguês, dando
voz e forma ao rock de subúrbio. As bandas de underground são o
melhor exemplo de luta contra o sistema e inadequação da arte à
lógica de mercado. Quaisquer que sejam os estilos, transmitem de
maneira clara a mensagem de que música não é só mercadoria e
entretenimento: é forma de expressão e modo de vida.
Religião é algo a ser superado não só porque adequou-se à
lógica de mercado, mas também porque é um modo de vida retrógrado
que fomenta preconceito, burrice e discórdia. Em cada esquina
encontramos uma igreja e nem por isso o mundo se tornou mais bonito.
Na verdade, o feio é o que deve ser ressaltado, uma vez que o
bonito é excludente. Tudo que é contra a ordem nos alimenta. Tudo
que perdeu a validade, como a crença no absurdo, a fé e a busca por
milagres, deve ser superado, não só porque não servem mais, mas
porque tudo isso é ilusório, escondendo as reais intenções dos
pregadores de deus, dos homens da fé. A ganância agindo em nome do
divino: isso deve ser combatido. Na verdade, o próprio divino deve
ser descaracterizado.
Nos aproveitaremos de qualquer boa oportunidade para descer o cacete
na mídia brasileira. Jornalistas e publicitários consideram-se,
nesse século XXI, como os detentores da verdade absoluta. São os
verdadeiros formadores de opinião, protetores da moral e dos bons
costumes, defensores da violência contra os marginalizados. São
vendedores dos piores produtos, senhores dos comerciais que rendem
prêmios e mais prêmios. TV é área de dominação burguesa: apenas
os artistas que mais vendem são convidados para os programas de
final de semana e a plateia vai engolindo tudo como se fosse um
buraco a ser preenchido. Em suas letras, o punk deve dizer: Não à
mídia corporativista! Não aos abusos de sua influência! Não à
passividade dos cidadãos brasileiros!
O que tentamos fazer é expressar de maneira consciente as novas
tendências de nosso tempo, fugindo daquilo que herdamos (o Rock
burguês e melancólico) para alcançarmos uma maneira autêntica de
se fazer Rock. Não queremos mais saber se nossos pais entendem ou
não, se é tão estranho morrer jovem ou se o trágico é feito por
causa de um coração partido. Queremos fazer e pronto, de forma
inconsequente, sem pensar no amanhã e sem nos preocupar com a
maneira que nos condenarão. Rock é liberdade, autonomia, espaço
para a livre expressão. Falar do desencantamento do mundo de maneira
corajosa e combativa, e não como um niilista conformado, frágil e
sem disposição para mudar. Rock 'n Roll é rebeldia.
Digam o que disserem: Opiniões infundadas não passarão de
borboletas frágeis numa roda de pancadaria. Estou farto dos que
insistem em ser estúpidos, metidos, arrogantes e abestalhados. Da
fragilidade e do sentimentalismo. Quero a velocidade máxima, o
abismo mais profundo e a noite mais escura. Dane-se o resto: o que
importa é o agora!
Fernando Costa e Silva